Eugenia Melo e Castro

domingo, 6 de abril de 2008

O Ator do Ônibus 174

O ator do 174

Num primeiro momento, tanto eu, quanto Arnaldo Altman e Zeca Duarte, na sede paulista do Festival da Música Brasileira que preparávamos para a TV Globo tensos e frustrados pela impossibilidade de qualquer participação, torcíamos por um tiro que acabasse com o terrível assaltante, marcando o fim do sofrimento dos passageiros do ônibus 174. Cada oportunidade perdida pela exposição do alvo era lamentada como se, em estando lá, e com uma arma telescópica, haveríamos de ter liquidado o bandido. Parecíamos torcedores assistindo a um jogo macabro. Depois do suspense, com a cena do policial fantasiado ou, do fantasiado de policial, que sorrateiro se aproximou e atirou, aplausos gerais. Alívio. Viva a justiça feita no ar. Ao vivo. Ibope total. Depois dos comentários, uma certa frustração e a pergunta: Por que mataram o rapaz? Afinal, Sandro desceu do ônibus ao dar por encerrada a sua representação. Para nós, pior o depois, ao saber que quem morreu foi a menina. Ele nem sequer havia sido atingido. Foi morto no camburão por força de julgamento e sentença ditada e executada por quem tinha por dever leva-lo em segurança para responder por seu ato. Ato único, da primeira oportunidade que teve para exercer a sua verdadeira vocação. Sim. Sandro era um artista nato. Naquela tarde e ônibus, aproveitou a chance que o fracassado assalto lhe proporcionou. Sabendo estar ao vivo e a cores e em todos os canais, percebeu que poderia atuar e dirigir. Encenou o terror, dando instruções às suas coadjuvantes e figurantes. Criou roteiro e texto. É verdade que sua figura não era a de um personagem heróico em ação numa encenação de protesto por sua exclusão social. Com certeza nunca soube da existência do “Teatro do Oprimido” do Boal. Era mais chegado ao pastelão. Para um crítico atento, suas idas e vindas no interior do ônibus revelavam um personágem do cinema mudo. Um patético canastrão, enredado numa tragédia burlesca. Fosse em preto e branco, seu gestual e movimentação poderiam ser confundidos com cena chapliniana. Por saber de cinema, blefava que aquilo não era filme. As imagens de seus diálogos com as reféns, com momentos de alguma ternura, mais pareciam apelos de empenho e cumplicidade na encenação cujo epílogo já estava previsível. Não haveria final feliz. Sair do 174 era o encerramento do programa. Logo viria o Jornal Nacional e a novela das oito que estava habituado a não perder. Além do que devia estar com fome. Larica. Sem ameaçar ninguém, deu por encerrada a sua pantomima e desceu para entregar sua arma ao primeiro que a solicitasse. Porém lá, naquela calçada, ninguém havia entendido as sutilezas de seu enredo. E não aconteceram elogios, nem os aplausos esperava. Nem a crítica haveria de o entender.

Solano Ribeiro

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